segunda-feira

A carta

"Querido Vicente,

As noites geladas aqui passadas sem ti foram fazendo de mim uma mulher igualmente fria, como uma pedra recolhida no Verão na margem dum rio e levada num bolso, em viagem, para depois ser lançada, atirada para o leito dum outro rio, gelado, num país distante, num continente distante, no fim do mundo.
Como quem lança um xisto deslizante sobre o rio, na esperança de que siga à superfície e se salve na margem oposta, sei que tudo fizeste para impedir que as coisas se passassem assim. Mas não consigo deixar de me sentir a pedra gelada em que me tornei, que se afundou na travessia. E nem este calor de Junho faz derreter a mínima camada à superficie da rocha basáltica, lisa e impenetrável que agora sou. Isso revela-se na permanente ausência de diálogo; há oito meses que apenas falo para pedir numa loja aquilo de que necessito. Por dentro, também me sinto de pedra e o meu corpo acompanhou-me nesta metamorfose; está mais seco, magro, e move-se com a rigidez própria dum rochedo."
Os dias passam como quem espera no silêncio o despertar do vulcão e chegue a hora em que tu, disparado destacado do seu centro, por entre milhares de outros pedaços de magma incandescente, caias sobre mim, abraçando-me e derretendo-me com o teu calor sufocante.
Mas nuvens de chuva parecem não querer abandonar a boca do vulcão. E tu não voltas. E tu não explodes e irrompes pela porta da entrada, de braços abertos e enorme ramo de gerberas laranja-fogo e te abraças a mim, a chorar.
Eu choro. Choro noite após noite. O fim da Primavera já chegou, cheio de calor, e eu mantenho-me imóvel, fria, baça, chorando.
As notícias do dia de hoje levaram para além do limite a dor que sinto. Escrevo esta carta na fé de que nada disto seja verdade, de que o que hoje ouvi já várias vezes sobre a perseguição, o acidente e a morte em plena estrada do alentejo - do nosso alentejo - do "Homem que matou o presidente" não passem duma blague, duma enorme brincadeira de mau gosto, dum enorme dislate. Mas já nada me pode atingir, agora que sou uma fraga. Vou abandonar a casa porque sei que, a esta hora, também já me devem procurar. E se tu - por teres conseguido outra vez, mais uma vez, ludibriar a fortuna - estiveres a ler esta carta, sabes em que praia me juntei aos outros seixos e pedras que a protegem das investidas do mar.

Amor,

Margarida"

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