quarta-feira

Sem fronteiras

O horizonte assomava ao fundo, um fino risco quase azul. Para trás, a noite, a cama ainda quente, a lâmina de barba descartada, o ar da estrada poluído com o fumo do GTD, os traços da noite a desvanecerem-se ao som murmurante da sexta e dos 190.
Passei a fileira de postos de controlo num abrandamento acelerado, não fosse a guarda (guardia?) acordar e pensar que ainda havia fronteira. Meti a fundo na autopista. Direcção: o centro do reino.
Os três dias sem dormir e os pesadelos da véspera faziam sentir-se de cada vez que piscava os olhos, um piscar de olhos que tendia a demorar-se mais e mais na fase em que os olhos se fechavam, até que assim ficaram: fechados. Não sei quanto tempo dormi mas acordei num sobressalto: ainda agarrava o volante e o taquímetro marcava 180. Em dispneia intensa, abrandei, liguei os quatro piscas e encostei à berma. Entrei no primeiro restaurante que vi, passei directo até ao balcão, balbuciei "servicios?", e segui o dedo cujo dono assustara, descendo até à cave. Às náuseas que o cheiro provocava sobrepôs-se a agradável sensação da água gelada na cara e no cabelo. Recuperado, subi, sentei-me numa mesa e só saí depois de vários bocadillos de jamon con queso, alguns cafés con leche e dois cafés solo. Solo, entrei no carro preto e decidi parar na primeira terriola, que afinal não o era: Talavera. Ao primeiro hotel que avistei na rua principal, virei na transversal e estacionei num beco duma rua secundária. O quarto era limpo, o prédio tipicamente espanhol, de tijolo maciço, maciço desde os anos 50. O cheiro dos lençois era diferente, experiência à época comum e depois terminada pelas multinacionais dos detergentes. O cheiro lavado fez-me adormecer na almofada confortável. O velho televisor emitia, quase em pensamento, uma voz cantada de mulher que me falava da Margarida. E dizia: "se quieres quitarrrrme la vida que, para nada, para nada me sirve sin ti...". Adormeci.

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