sexta-feira

Higiene de corpo e alma

"Precisava mesmo de dormir", pensei, enquanto vestia a última t-shirt lavada que me restava e me enroscava na cama de casal.
Acordei já o calor apertava. Depois de retemperado pelo duche frio, vesti de novo as calças de ganga e a camisa da véspera; em conjunto, conseguiram passar-me algum do seu mau humor.
Após um pequeno almoço rápido, envolvendo, entre outras coisas, um donut e uma coisa azeda a que por ali chamam café, entrei na barbearia Desi. Provavelmente em honra da filha de um dos três barbeiros. A barbearia era estreita e comprida e as três cadeiras, colocadas sequencialmente frente ao longo espelho que cobria toda a parede, eram dominadas cada uma pelo seu artesão. Na parede oposta, pequenas cadeiras forradas a napa e esventradas por cortes antigos revelavam, aqui e ali, pedaços das suas entranhas de espuma. Sentei-me à espera de vez observando, à vez também, o trabalho de cada um deles. Tentei nessa observação identificar o lugar de cada um naquela sociedade de cortadores de cabelos e outras pilosidades alheias. O primeiro, junto à porta e à montra, era seguramente um empregado. Trabalhava ao sol e, por isso, ao calor. O suor escorria-lhe pelo rosto. Assim, apesar de magro e do cabelo tingido de negro, dum negro de restaurador Olex, parecia mais gordo e mais velho do que os 50 anos que deveria ter. Tinha longas e afiadas unhas. Apesar de bem cuidadas, ameaçavam péssimo efeito no escalpe dos clientes (vítimas?) e deveriam ter contribuído de forma decisiva, ao longo dos últimos 25 anos, para a sua situação de reles funcionário.
O segundo, a meio da estreita sala, era a antítese do anunciado nos inúmeros rótulos de produtos para a queda do cabelo. Exibidos junto ao espelho em prateleiras de vidro, denegrindo a sua marca ao escondê-la atrás duma camada de poeira humedecida, não haviam disfarçado que a sua calva era lisa, sem rugas. Apesar de balofo, tinha um ar mais saudável que o do funcionário anterior. Concentrado, fazia a barba a um comum cliente; mesmo através dos gestos precisos, mecânicos e gastos por uma vida que os usara, conseguia transparecer, não sei como, a sua vontade eterna de ter tido outra profissão. Pintor, talvez, artista doutra arte, seguramente.
O terceiro era claramente o accionista maioritário. Os anteriores trabalhavam em silêncio. Este era o responsável pela voz de rádio a pilhas que emitia, desde que eu entrara, as descrições pormenorizadas do estilo de jogo do Atlético local à pobre vítima que caíra na sua cadeira. À esquerda dos seus gestos espalhafatosos e de tirar olhos, a tesoura fazia razias sucessivas aos quadros que, pendurados na parede do tecto falso da passagem para a estreita casa de banho, exibiam formações antigas da equipa madrilena, em conjunto com bilhetes rasgados de jogos célebres.
A sorte pareceu estar do meu lado quando o barbeiro de unhas afiadas levou o único cliente que ainda esperava antes de mim. Coube-me assim o sócio minoritário do meio da sala. Pedi-lhe máquina 4, paguei e saí sem uma palavra, não sem antes ter travado, agarrando-lhe a mão, a sua primeira e única tentativa de corte das minhas patilhas e da restante barba.
Enjoado de tantos campeonatos por ganhar apesar de jogar tão bem, segui pela sombra da rua larga. Entrei numa grande e bela igreja de bairro, anos 60, frente à qual o meu carro esperava desde a véspera, estacionado sob protecção divina. Rezei. Quando saí, reparei em dois homens parados à sombra, em lados opostos aquele em que o meu carro estava estacionado. A quase simétrica distância a que se encontravam do carro denunciava-os de modo gritante. Decidi voltar à igreja. Ao passar as altíssimas portas de madeira, o padre, que já me observara anteriormente, avançou na minha direcção, num ligeiro sorriso e olhos cravados nos meus:

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