quinta-feira

Ó mar alto...

Cheguei a Newquay a meio da tarde. Esperava-me um céu antipático e uns quebra-côcos, ao fundo da falésia, que não convidavam ao surf. "Que péssima recepção", pensei, ao chegar a uma vila famosa por praias de água fria encaixadas em paredes de rocha branca e pelas melhores ondas a norte do canal da mancha.
"Metade dos polícias do continente já devem ter a minha foto e eu aqui, a pensar em surf...". Newquay era uma vila piscatória. Lembrava-me doutras aventuras por estas bandas. Aí tinha conhecido a descontração dos pescadores locais que, ao contrário doutras paragens, tinham o cândido hábito de menosprezar as suas lanchas e outros pequenos barcos, deixando-os destrancados e à mercê de quem, como eu, procurava sair de circulação e chegar à Escócia por outro meio que não a M40 ou o Glasgow shuttle da British...
Um jovem paki, no que teriam sido os seus early years de grammar school caso o pai tivesse resistido à tentação do álcool e não tivesse destruído a economia familiar, pediu-me dinheiro; eu troquei-o por uma dose e meia de fish-n-chips e uma lata da draught local, que ele me foi buscar ao boteco da esquina. A fome apertava, e queria garantir que me continuariam a procurar ainda apenas a sul das Shetland...
A noite caiu de repente, por detrás das nuvens, sem que tivesse visto o céu naquele dia. Até o habitualmente reconfortante verde dos pastos junto ás falésias, no seu fantástico contraste com o branco calcário e com o amarelo pálido e azul forte da praia e do mar, haviam passado o dia a variar entre tons de cinzento. Pelo menos era o que aquele dia deixaria na minha memória, talvez fosse assim que estivesse a conseguir traduzir aquelas últimas horas.
Voltemos à noite: aproximei-me da maré vazia na praia, junto à falésia a que se chega após sairmos da vila. Percorrera a pé o caminho até lá. Não antes de ter garantido que os locais haviam abandonado a praia e me haviam deixado um despercebido corredor de passagem.
Com um saco de plástico impermeabilizei os artefactos mais vulneráveis à água do mar: carteira, bússola, botas de montanha. O resto da roupa sobrou dentro da mais-ou-menos impermeável mochila. Fiz-me ao mar de calças de ganga, t-shirt e pull-over pretos, como a côr da noite e do mar em que me embrenhava.
Enquanto nadava, fazia-o em direccção ao local em que percepcionara, pela última vez, durante o lusco-fusco, as pequenas embarcações.
Nadava agora em fortes braçadas e esperava chegar rapidamente junto à mancha de barcos fundeados; mas essa mancha teimava em não se destacar do fundo, agora totalmente negro. Parei de nadar; olhei para trás e vi que estava já muito longe, e muito cansado. As roupas molhadas pesavam agora toneladas...Enquanto ofegava e tentava manter-me à tona de água olhando para a costa, o meu calcanhar tocou em algo que se movia. Fiquei estarrecido! Mas era apenas a corda da âncora do primeiro barco do grupo.
Depois de analisar os vários barcos fundeados, escolhi uma lancha com um bom motor. Escorria água quando consegui ligá-lo e me sentei ao volante, mão no acelerador. Guiando-me pela luz do farol, rumei para fora de costa. O mais lentamente possível. As ondas também eram lentas, e as luzes da vila foram sendo absorvidas pela mancha escura que, nesse momento, tudo absorvia, excepção para os violentos rasgos de luz do farol, que tudo cortavam em imparáveis movimentos circulares. O motor ronronava, e o marulhar da água contra a proa trouxe-me à memória outras viagens que não fizera sózinho.

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