sexta-feira

Entre muralhas

Avistei-as antes de chegar à rotunda. A sensação era a mesma: a da certeza de que quem ali vivia não tinha noção de que lá vivia, de facto. Passeavam no meio do casario seiscentista mas o que viam eram casébres, ou "casas vélhãs". Faziam as compras em arcadas com mil anos de história mas afinal eram "ruas sem luz e lojas pequenãs", com "os tijolos à mostrã", fazendo referência ao tijolo maciço original que, qual obra de arte, estruturava as abóbodas dos pisos térreos das fantásticas construções. Os esconderijos naturais e de postal das ruas da mouraria eram "ruas estrêtas", "nã se pode quase lá entrar com o carrõ!". Foi numa dessas que deixei o meu, junto à Sé. O movimento era quase nulo, tal como a temperatura do ar. Apenas o ruído dum compressor, ventilando o interior dum restaurante, dava a entender haver vida humana atrás daquelas paredes.
Desci a rua empedrada, dum empredado desorganizado de torcer pés, e cheguei "à da tia da Margarida". Bati quatro vezes, e já ia desesperando quando o vidro fosco da porta de madeira verde-escura se iluminou ténuamente, com uma luz lá ao fundo. Os passos leves da velhota deram lugar a um "Mê filho, que fazes tu aqui a estas horas da nôtê?", instalado num sorriso sem placa. "Entra, filho, entra que está muito friuo!" Aquela mania de prolongar o fim das palavras era outra herança não reconhecida como tom acolhedor que era. Pedi para ficar "um dia ou dois" que a Margarida estava para fora e eu tinha ido ali em trabalho. Deixara o carro a arrefecer na garagem do pátio, e havia fechado eu o enorme portão de grades que estava aberto. Podia enfim dormir pela primeira vez, em três sufocados dias.

1 comentário:

Anónimo disse...
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